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Contador D'Estórias

Um blog com estórias dentro.

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Dom | 14.05.17

Salvador

Carina Pereira

Lembro-me da minha mãe me contar que, antigamente, toda a gente lavava a loiça a correr no fim do jantar, para depois se juntarem todos em frente à televisão a ver a Eurovisão. Em criança ainda assisti a algumas edições do festival, embora não me recorde de quase nenhuma actuação Portuguesa e, aos poucos, e à medida que o festival deixou de ser um espectáculo onde Portugal singrava e muitas das actuações pareciam uma competição a ver quem era o mais estranho, acabei por deixar de de seguir o espectáculo. Conhecia, aliás, muito poucas pessoas que o faziam. O que, na geração dos meus pais, era um espectáculo que ninguém pensava sequer perder, na minha geração não passava de um encolher de ombros.

Entendi este ano que a Eurovisão ia ser um "negócio mais sério" quando vi vários artistas - e o Nuno Markl - a noticiarem no facebook os nomes que iam concorrer para levar uma canção à competição: entre eles a Márcia, o Rui Drummond, o Fernando Daniel e o Salvador Sobral. O Salvador Sobral que, logo após as primeiras semi-finais, ainda apenas contra artistas Portugueses, se tornou no nosso Salvador.

A música era toda ela Luísa Sobral. O toque de jazz, a letra simples mas sentida; há autores e músicos que têm um toque qualquer, uma impresão digital que não nos deixa enganar em relação à autoria de uma peça, e a Luísa é um deles.

Com a gentileza da voz do Salvador, uma música já de si bonita, virou algodão doce para a alma.

Ontem perdi a primeira actuação do Salvador; tão habituada que estou a ver os espectáculos Eurovisivos - not - esqueci-me do concurso e acabei por marcar um café com amigos, enquanto os meus outros amigos - Portugueses, claro está - se encontravam na casa de uns para verem o espectáculo. Quando o Salvador cantou pela primeira vez ia a caminho para me juntar a eles. Não há problema, disse-lhes eu, o Salvador vai ganhar e depois eu vejo-o a cantar no fim. E vi.

Gritámos cada doze pontos como se fossem golos, roemos as unhas quando os doze pontos iam para a Bulgária, vi a Itália - um dos meus favoritos - a ir descendo e ficar aquém das minhas apostas, mas vi, sobretudo, Portugal a levar os doze pontos uma e outra vez e, em toda a votação, a firmar-se de pedra e cal no primeiro lugar. Não saiu mais dali. Quando a canção com os segundos pontos mais altos da noite foi a Bulgária, o Salvador e a Luísa olharam um para o outro, pensando que tinham ficado em segundo lugar e nós exultámos com um resultado que já se adivinhava. A equipa Portuguesa finalmente entendeu quem eram os verdadeiros vencedores da noite e, deste lado, nós rímo-nos e abraçámo-nos e, por momentos, caminhámos dois mil quilómetros de volta ao nosso país. Nem sempre precisamos de sair do sítio para chegarmos onde o nosso coração mora.

O que mais me tocou foi a Luísa ter subido ao palco, ao lado do irmão, e a forma como o público rejubilou quando ela começou a cantar. Pois é, não temos só um artista capaz de vos fazer sentir a música, temos dois. Bem, temos muitos, naquela noite eram apenas aqueles dois.

Ser Português é muito isto. Vamos perdendo esperanças quando as coisas não nos correm de feição, queixamo-nos de tudo numa atitude pessimista e saudosista, muitas vezes com saudade de tempos que nem existiram, ou que são vistos através de uma camada de pó deixada pela passagem do tempo. Mas há sempre ali um canto do coração onde o mar nos vem beijar os pés, uma frincha por onde o fado vai entrando à socapa, um orgulho que trepa peito acima e grita sem contenção, nem dúvida "Portugal!".

Carina Pereira

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