Ter | 26.01.16
O Vendedor De Partes Soltas
Carina Pereira
Lúcia limpou bem os pés no tapete pousado à porta antes de a abrir e, anunciada pelo toque da campainha, entrar na loja. Era uma loja que, sem ser grande, nem pequena, estava coberta a toda a volta por armários de madeira escura e mal polida. Os armários, esses, continham gavetinhas, gavetas e gavetões, e de dentro delas parecia pulsar a própria vida.Não era mentira. Pulsava.O vendedor de partes apareceu de lá do fundo, que é de onde todos os vendedores de lojas assim, sem serem grandes, nem pequenas, aparecem, quando a campainha da porta retine. Olhou-a, de alto a baixo; carregava consigo uma gaveta igual às tantas outras que ali eram parede. Limpava-a com um pedaço de pano usado. Poderia ter sido, em tempos, uma camisola antiga, ou o que sobrara de uns calções de praia, mas já não era possível adivinhar as cores ou os padrões por causa do desgaste. Contrastava o pano com as mãos do vendedor. Essas, eram delicadas, esguias e suaves. As suas unhas estavam bem arranjadas, e os dedos não tinham calos.Quando a olhou, Lúcia entendeu que ele adivinhara o porquê de ela ter vindo. Os olhos dele pousaram mais longamente no lado esquerdo do seu peito, onde o coração lhe doía. Esperou que ele falasse primeiro.- O que deseja?A voz era áspera, mas musicada, como se uma serra tivesse aprendido a dedilhar as cordas transparentes de uma harpa. Talvez, por isso, a tivesse desconcertado.Lúcia respirou suavemente, para ele não lhe notar o nervosismo da postura, e respondeu:- Um coração. O vendedor pousou a gaveta vazia e já limpa no seu sítio, e depois encarou Lúcia. Encolheu os ombros, abriu as mãos, palmas para o céu, e a sua expressão suavizou-se, como o primeiro raio de sol que espreita por entre as nuvens depois de um aguaceiro forte.- Já não temos. É o que toda a gente me vem pedir. As pessoas deviam ter mais cuidado; andam com o coração ao deus de Ará, e qualquer falha no manuseamento lhos desloca do peito. Depois, já não serve mais lá bem. Ainda ontem veio cá um rapaz, é o segundo coração que lhe vendo em quinze dias. Foi o meu último, agora não tenho mais. Para o mês que vem, talvez. Lúcia desapertou as mãos que tinha junto ao peito, sobre esse seu coração também ao deus de Ará. Deixou-as cairem a seu lado. Viera de tão longe, uma viagem que parecera durar uma vida. Não a poderia fazer de novo.O vendedor, com as gavetas cheias de tantas outras partes, abarcou com um movimento de braço todas as possibilidades.- Posso ajudá-la com outra coisa? Uns pulmões? São muito populares hoje em dia, e há uma máquina de tabaco lá atrás...Lúcia abanou a cabeça. Tentou sorrir, para quebrar de vez o embaraço e a desilusão, mas sentiu o coração a deslocar-se mais um pouco. Tentara tantas vezes aferrolhá-lo, para que não lhe andasse assim a chocalhar entre as costelas.- E olhos? Tem olhos?E o vendedor entendeu. Já que não podia sarar de imediato o coração desenquadrado, ia encantar outros corações que por aí andassem, ainda bem ajustados nas avenidas dos seus próprios peitos.- Sim, - respondeu, e foi às caixas mais altas, às relíquias mais preciosas, porque quem pode pagar um coração, pode pagar os melhores olhos desta terra – Tenho estes azuis turqueza, uma raridade...Mas Lúcia interrompeu-o, estendeu a mão, abanou a cabeça.- Não. Quero aqueles. Para a estante mais baixa, apontou certeira, dedo em riste.O vendedor olhou duas vezes, depois mais uma, para ela. Lúcia tinha já olhos castanhos, mais belos ainda do que aqueles que, com tanta certeza, indicava.- Aqueles. – Lúcia insistiu, perante o sobrolho franzido do vendedor, perante a hesitação do seu gesto.O vendedor acenou, colocou os olhos turquesa de volta ao lugar a que pertenciam, e depois pegou nos olhos que Lúcia escolhera. Levou-a para dentro e terminou a operação em minutos. Era minucioso, treinado.Lúcia não sentira nada, apenas um ligeiro formigueiro quando ele lhe retirara os seus olhos antigos e lhe colocara os novos. Via melhor agora, mais longe. Guardou os seus antigos olhos, embrulhados em fina seda, dentro da bolsa, com carinho.Pagou e depois saiu da loja. Esperou ver o vendedor abrigar-se de novo lá atrás e encarou-se por fim na vitrine espelhada.Os seus olhos, os seus novos olhos, eram de um castanho mais escuro, mais opaco. Eram perfeitos.Talvez assim, quando ele lhe perguntasse se ela o amava, e ela mentisse, dizendo que não, ele não conseguisse ler no fundo dos seus olhos a mentira, e resolvesse partir.Talvez, quando ele chegasse a saber-lhe ao sabor de uma outra boca, perguntando-lhe se, ainda assim, o continuava a querer, não fosse então capaz de vislumbrar nos olhos dela o perdão que ela lhe dava ainda antes de ele pedir.Talvez assim ele decidisse ir embora, já que a ela, por causa deste seu coração com defeito, lhe faltava a coragem.E assim sendo, quem sabe, um dia o seu coração voltasse ao sítio, e os seus verdadeiros olhos também.Carina Pereira
*Inspirado no conto Coração De Porco, por Ondjaki, do livro E Se Amanhã O Medo