Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Contador D'Estórias

Um blog com estórias dentro.

Contador D'Estórias

Um blog com estórias dentro.

Ter | 19.01.16

Logo, Logo

Carina Pereira
Ela mexe-se no leito, desperta calmamente do seu sono leve, e não sabe o que a acordou. Se a brisa que entra pela janela aberta, resguardada apenas pelo delicado algodão das cortinas, se um sonho de que não se lembra. Lá fora as cigarras cantam contra o orvalho nocturno. Abre os olhos, fitando a janela, e antevê a lua lá no alto, auréola de luz amarela, parece um brinco colocado na orelha do céu.Ele beija-lhe o ombro despido e ela sobressalta-se, antes de o reconhecer por sentido. Fita-o, e os olhos dele são duas pedras cintilantes por entre a escuridão.- Sentiste saudades minhas?- Sou-te saudade.A saudade não se sente, a saudade é-se.Ele percorre com o dedo indicador o relevo da espinha dorsal dela, um fio de água correndo pelo rio do seu corpo. Estava frio, estava sempre frio como um chá esquecido sobre uma mesa de madeira antiga. Frio como estava, fora tão quente que a marca ficara para sempre.Pegou-lhe no braço e desenhou-lhe, num formigueiro lento que lhe percorreu o pulso até ao cotovelo, um mapa. Eram as estradas que tinham trilhado até ali, até àquele recanto no fim do mundo onde ela decidira ficar. As estradas também nos escolhem a nós.- Quando vens?A pergunta, repetida de outras vezes, ia-se tornando ansiosa, quase veemente.Ela olhou a navalha, que ele usara tantas vezes para fazer a barba, pousada sobre a mesinha de cabeceira. Era só agarrá-la em mão fechada, encontrar o caminho direito ao coração. Mas os dedos dela tremiam de cada vez que tentava; recuava, voltava a pousar a navalha sobre a mesa de cabeceira e ia dormir. Por esta altura, já não era um querer, era um ritual de adormecimento. De entorpecimento; não ia só dormir, is entorpecer para deixar de ser saudade.- Logo, logo.A resposta, dada com cada vez menos fervor, um descendo no crescendo da pergunta, saía-lhe já  mais por habituação do que por crença, mas parecia sossegá-lo. Ele virou-a com delicadeza e depois agarrou-a pela cintura, contra si.De madrugada, quando a forma dele foi lentamente desaparecendo, como que sugado pela aurora, ela sentou-se na cama, olhando a navalha. Desta vez, não lhe pegou. Levantou-se, encheu a banheira de porcelana quase até ao bordo e mergulhou na água quente.O obituário, datado meses antes, ainda repousava sobre mesa da cozinha, a relembrar-lhe a promessa que ela lhe tinha feito na primeira noite que ele, já espectral, lhe tinha aparecido.Tomou o pequeno almoço com vagar. À noite ele sempre vinha e ela, a principio aterrorizada, agora com profundo deleite, deixava que as suas mãos a percorressem como o faziam em vida. Deixava que os seus lábios a tocassem, mesmo frios, como se houvesse ainda um coração a bater-lhe no peito. Não era sonho, nem estava louca. Era aparição. Queria que ela se matasse, para o ir encontrar onde lá estava, mas ela tinha medo dos desencontros da morte. Deixava-se estar com ele neste limbo onde ainda eram amantes.À noite, pertencia-lhe, a promessa da navalha ali ao lado, espectadora dos suspiros que um no outro plantavam.De dia, encontrara já afecto noutros braços, uns braços quentes que a tinham salvo da miséria da solidão, antes de o ser saudade se ter tornado uma mentira.Um na morte, outro na vida. E ela, naquele limbo, na ponta da navalha, sabendo que um dia teria de escolher a quem dar o seu tempo por inteiro. Mas não agora; logo,logo.

Carina Pereira

Ter | 19.01.16

Logo, Logo

Carina Pereira
Ela mexe-se no leito, desperta calmamente do seu sono leve, e não sabe o que a acordou. Se a brisa que entra pela janela aberta, resguardada apenas pelo delicado algodão das cortinas, se um sonho de que não se lembra. Lá fora as cigarras cantam contra o orvalho nocturno. Abre os olhos, fitando a janela, e antevê a lua lá no alto, auréola de luz amarela, parece um brinco colocado na orelha do céu.Ele beija-lhe o ombro despido e ela sobressalta-se, antes de o reconhecer por sentido. Fita-o, e os olhos dele são duas pedras cintilantes por entre a escuridão.- Sentiste saudades minhas?- Sou-te saudade.A saudade não se sente, a saudade é-se.Ele percorre com o dedo indicador o relevo da espinha dorsal dela, um fio de água correndo pelo rio do seu corpo. Estava frio, estava sempre frio como um chá esquecido sobre uma mesa de madeira antiga. Frio como estava, fora tão quente que a marca ficara para sempre.Pegou-lhe no braço e desenhou-lhe, num formigueiro lento que lhe percorreu o pulso até ao cotovelo, um mapa. Eram as estradas que tinham trilhado até ali, até àquele recanto no fim do mundo onde ela decidira ficar. As estradas também nos escolhem a nós.- Quando vens?A pergunta, repetida de outras vezes, ia-se tornando ansiosa, quase veemente.Ela olhou a navalha, que ele usara tantas vezes para fazer a barba, pousada sobre a mesinha de cabeceira. Era só agarrá-la em mão fechada, encontrar o caminho direito ao coração. Mas os dedos dela tremiam de cada vez que tentava; recuava, voltava a pousar a navalha sobre a mesa de cabeceira e ia dormir. Por esta altura, já não era um querer, era um ritual de adormecimento. De entorpecimento; não ia só dormir, is entorpecer para deixar de ser saudade.- Logo, logo.A resposta, dada com cada vez menos fervor, um descendo no crescendo da pergunta, saía-lhe já  mais por habituação do que por crença, mas parecia sossegá-lo. Ele virou-a com delicadeza e depois agarrou-a pela cintura, contra si.De madrugada, quando a forma dele foi lentamente desaparecendo, como que sugado pela aurora, ela sentou-se na cama, olhando a navalha. Desta vez, não lhe pegou. Levantou-se, encheu a banheira de porcelana quase até ao bordo e mergulhou na água quente.O obituário, datado meses antes, ainda repousava sobre mesa da cozinha, a relembrar-lhe a promessa que ela lhe tinha feito na primeira noite que ele, já espectral, lhe tinha aparecido.Tomou o pequeno almoço com vagar. À noite ele sempre vinha e ela, a principio aterrorizada, agora com profundo deleite, deixava que as suas mãos a percorressem como o faziam em vida. Deixava que os seus lábios a tocassem, mesmo frios, como se houvesse ainda um coração a bater-lhe no peito. Não era sonho, nem estava louca. Era aparição. Queria que ela se matasse, para o ir encontrar onde lá estava, mas ela tinha medo dos desencontros da morte. Deixava-se estar com ele neste limbo onde ainda eram amantes.À noite, pertencia-lhe, a promessa da navalha ali ao lado, espectadora dos suspiros que um no outro plantavam.De dia, encontrara já afecto noutros braços, uns braços quentes que a tinham salvo da miséria da solidão, antes de o ser saudade se ter tornado uma mentira.Um na morte, outro na vida. E ela, naquele limbo, na ponta da navalha, sabendo que um dia teria de escolher a quem dar o seu tempo por inteiro. Mas não agora; logo,logo.

Carina Pereira