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Contador D'Estórias

Um blog com estórias dentro.

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Dom | 17.01.16

José Eduardo Agualusa Em Den Haag

Carina Pereira
Às vezes, os planos de última hora, são os melhores.Quarta-feira à noite, a minha feed do facebook oferece-me uma notícia que eu esperava há muito, na própria página do autor: José Eduardo Agualusa ia estar na Holanda, especificamente em Haia, para falar do seu último livro traduzido para Holandês - A Teoria Geral Do Esquecimento - tudo inserido no festival de literatura de Den Haag.Queria ir, claro. Queria ir com todo o querer, mas é-me comum encontrar impossibilidades em tudo. O evento era já nos dias seguintes. Den Haag não é exactamente ao fundo da rua. Mais: era na Holanda; onde raio podia eu deixar o carro na Holanda para poder ir de comboio? E se não chegava a Eindhoven a horas e perdia o último autocarro da noite e lá ficava, a vadiar até às primeiras horas de manhã? Conduzir 1h45 para chegar a Den Haag também não é a maior viagem já feita, mas para alguém que, como eu, teme o desconhecido e nunca tinha feito semelhante trajecto, ainda para mais com ameaça de neve, pareceu-me ambicioso. Arriscado. Lá está, peçam-me impossibilidades e eu arranjo-as.Então, alguém veio em meu auxílio. E, mesmo depois de me ter sido dado um plano, continuei na dúvida. Vou, não vou? Tão em cima da hora, vou comprar bilhete para o evento, bilhete para o comboio, para ver Agualusa por vinte minutos. Valerá a pena?Fernando Pessoa falou mais alto - e umas outras quantas vozes de incentivo - e, a ser verdade que tudo vale a pena se alma não é pequena, procurei a minha alma e fui.Já disse várias vezes que adoro andar de comboio. Podia ir ali, horas e horas, de um lado para o outro, entretida por um livro ou algumas canções, sem me aborrecer. Deixei o carro em Eindhoven, comprei bilhete para Den Haag e, embalada por uma frase de Agualusa - o melhor da viagem é o sonho - lá fui eu sonhando na viagem.Cheguei a Den Haag passavam dez minutos das cinco da tarde. O dia já escurecia, e a vontade de passear um pouco pela cidade esmoreceu. Estava frio e eu, sem saber bem como tudo ia correr, ainda estava um pouco ansiosa. Encontrei o local do evento facilmente - era apenas a uns minutos da estação - o Theater Aan Het Spui. É difícil de passar ao lado, visto que é a figura central que nos recebe. Tem luzes coloridas no chão, à entrada, e um aspecto acolhedor. Fui pedir informações acerca do evento da noite e, sabendo que as portas para as palestras abriam às sete, saí de novo para a rua.Quero voltar à cidade um dia, porque nem sequer me afastei daquela praceta que rodeava o local do evento. Tinha restaurantes, um café simpático, imensas lojas, e um dos edifícios centrais era a biblioteca. Estava aberta, fechava às 20h00 e era enorme! Não cheguei a visitar o piso superior, mas na entrada era possível comprar souvenirs, e beber alguma coisa enquanto nos perdíamos na leitura. Queria regressar ali para tomar café, mas primeiro fui dar mais uma volta, jantei e só depois me instalei numa das mesas com um latte macchiato e o meu kindle. Tinha começado a ler, ironicamente, Um Estranho Em Goa, e decidi queimar a hora que ainda faltava nessas páginas.Às sete voltei ao teatro. Entreguei o meu bilhete, fiz ainda algumas questões - aquilo estava vazio à parte de algum pessoal da organização - e sentei-me a uma mesa à espera. Fui lendo e fui olhando em volta, vendo quem ia chegando. A certa altura, ouvi falar Português; levantei os olhos do livro e ali, num grupo de cinco pessoas, estava o José Eduardo Agualusa.É estranho porque, escrevendo em retrospectiva, só no dia seguinte é que a ficha me caiu e se assentou no facto de que, na verdade, eu conheci o meu escritor favorito. (Está bem, um dos meus dois, porque Mia Couto é bom demais para eu lhe dar o segundo lugar do pódio, as histórias de ambos podem ficar ali, no primeiro lugar de favoritismo.)Olhei, à espera de uma pausa na conversa que o grupo estava a ter e que nunca mais chegava. Não queria ser rude, e ir lá interrompê-lo. Quando fui para Den Haag nem sequer era certo eu conseguir falar com ele, visto que teria de me vir embora antes do evento acabar. Mas continuei a olhar, de vez em quando, a ver se ele dava sinal de mim. E, a certa altura, funcionou. O José Eduardo Agualusa olhou, eu olhei de volta, ele ficou na dúvida e finalmente reparou que a atenção era para ele. Pediu licença ao grupo para se afastar, eu peguei nas minhas coisas, e encontramo-nos a meio caminho.Cumprimentei-o, agradeci-lhe ter-me tirado algumas dúvidas que eu colocara através do facebook sobre o evento, e perguntei-lhe se me podia assinar os livros que eu trazia. Acedeu ao pedido de boa vontade, conversou um bocadinho, tirou fotografias. Não lhe quis roubar muito tempo - afinal a agenda dos últimos dias tinha sido cheia - e, quando ele olha para mim a escrever a data para finalizar o autógrafo e, a rir, me pergunta se estamos em Janeiro, dá para ver que o cansaço é sério. ;)[gallery ids="1575,1574,1573" type="square"]Despedi-me, com a promessa de nos vermos novamente na palestra, e às oito horas lá fui para a sala designada.Era uma sala pequena e, infelizmente, não estava exactamente cheia. Digo infelizmente porque acho que, mesmo entendendo que um escritor de língua Portuguesa vai ter certamente mais sucesso e atenção em países da mesma língua, gostava de ter visto a sala cheia. Mas, tanto melhor para mim, podia ver e ouvir melhor o que ia ser dito.O tema da noite era O Texto Da Minha Vida, e os autores eram convidados a escolherem um texto que os tivesse marcado, moldado a sua escrita, servido de inspiração aos escritores em que se tinham tornado.José Eduardo Agualusa, o primeiro autor a subir ao estrado para falar do seu texto, escolheu um livro. Escolheu Fernando Pessoa (Bernardo Soares, na verdade) e o seu Livro Do Desassossego.O orador fez algumas perguntas - a palestra era em Inglês - e José Eduardo Agualusa foi explicando Fernando Pessoa, foi falando dos heterónimos e de como é extremamente difícil escolher apenas um texto. Tinha escolhido uma passagem do livro, mas também apontou que toda aquela obra, qualquer passagem sua, poderia ser o texto a sua vida. Aquele livro em particular, - do qual possui vários exemplares em vários lugares (a relembrar que apesar de ter nascido em Huambo, Angola, José Eduardo Agualusa vai morando entre Luanda, Lisboa e o Brasil) - viaja sempre com ele. A versão que ele prefere, (pois O Livro Do Desassossego não é um romance, ou um livro de poesia, mas um emaranhado de textos soltos e descomprometidos uns dos outros, que Fernando Pessoa guardou numa gaveta e nunca terminou e foi depois compilado por vários editores de formas diferentes) é a catalogada por Richard Zenith.Não tomei apontamentos, e nunca antes li este livro mas, se a memória não me falha, deixo aqui o trecho que José Eduardo Agualusa escolheu."12. Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço. Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada... De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a’ um filho vivo... Sim, croché..."[gallery ids="1580,1579,1578"]Agualusa falou também sobre A Teoria Geral Do Esquecimento, uma narrativa fabulosa e, questionado acerca do surgimento desta história, explicou que não se recorda ao certo de como a começou, mas que tem uma vaga ideia da história ter vindo até ele em sonhos, já que isso acontece com vários dos seus romances. (Deus quer, o homem sonha, e a obra nasce.)Por pena os vinte minutos da palestra eram contados, e embora Agualusa tenha dado a entender que aprendeu a controlar alguma parte dos seus sonhos, o orador não fez perguntas acerca disso.O escritor confidenciou também que, quando está a escrever e precisa de inspiração, de algo que o empurre para a história que quer criar, é sempre à poesia ou ao Livro Do Desassossego que recorre. Uma passagem, alguns versos, e as engrenagens começam a girar.Falou ainda no facto de ter sido jornalista - e um mau jornalista - porque tudo no jornalismo tem de ser facto, mas para ele havia sempre um " e se...?". E foi assim que passou do jornalismo para a ficção, porque a ficção é a realidade depois de se perguntar "e se...?".Eram 20h20 quando o segundo escritor da noite a trazer um texto tomou o lugar ocupado por Agualusa, que se sentou ali, na primeira fila a escutá-lo também. Quando este terminou, às 20h40, peguei nas minhas coisas. Despedi-me do meu autor predilecto (!!!), agradeci mais uma vez a disponibilidade, e vim embora, de coração leve.Valeu a pena uma tarde toda para poder ouvi-lo por vinte minutos, para ver de perto o construtor daquelas palavras que leio, e me lêem tantas vezes a mim. A saber: José Eduardo Agualusa dobra as páginas dos livros. Foi assim que marcou a passagem escolhida n' O Livro Do Desassossego. :)Este foi o meu Milagrário Pessoal de Janeiro.

Carina Pereira

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Dom | 17.01.16

José Eduardo Agualusa Em Den Haag

Carina Pereira
Às vezes, os planos de última hora, são os melhores.Quarta-feira à noite, a minha feed do facebook oferece-me uma notícia que eu esperava há muito, na própria página do autor: José Eduardo Agualusa ia estar na Holanda, especificamente em Haia, para falar do seu último livro traduzido para Holandês - A Teoria Geral Do Esquecimento - tudo inserido no festival de literatura de Den Haag.Queria ir, claro. Queria ir com todo o querer, mas é-me comum encontrar impossibilidades em tudo. O evento era já nos dias seguintes. Den Haag não é exactamente ao fundo da rua. Mais: era na Holanda; onde raio podia eu deixar o carro na Holanda para poder ir de comboio? E se não chegava a Eindhoven a horas e perdia o último autocarro da noite e lá ficava, a vadiar até às primeiras horas de manhã? Conduzir 1h45 para chegar a Den Haag também não é a maior viagem já feita, mas para alguém que, como eu, teme o desconhecido e nunca tinha feito semelhante trajecto, ainda para mais com ameaça de neve, pareceu-me ambicioso. Arriscado. Lá está, peçam-me impossibilidades e eu arranjo-as.Então, alguém veio em meu auxílio. E, mesmo depois de me ter sido dado um plano, continuei na dúvida. Vou, não vou? Tão em cima da hora, vou comprar bilhete para o evento, bilhete para o comboio, para ver Agualusa por vinte minutos. Valerá a pena?Fernando Pessoa falou mais alto - e umas outras quantas vozes de incentivo - e, a ser verdade que tudo vale a pena se alma não é pequena, procurei a minha alma e fui.Já disse várias vezes que adoro andar de comboio. Podia ir ali, horas e horas, de um lado para o outro, entretida por um livro ou algumas canções, sem me aborrecer. Deixei o carro em Eindhoven, comprei bilhete para Den Haag e, embalada por uma frase de Agualusa - o melhor da viagem é o sonho - lá fui eu sonhando na viagem.Cheguei a Den Haag passavam dez minutos das cinco da tarde. O dia já escurecia, e a vontade de passear um pouco pela cidade esmoreceu. Estava frio e eu, sem saber bem como tudo ia correr, ainda estava um pouco ansiosa. Encontrei o local do evento facilmente - era apenas a uns minutos da estação - o Theater Aan Het Spui. É difícil de passar ao lado, visto que é a figura central que nos recebe. Tem luzes coloridas no chão, à entrada, e um aspecto acolhedor. Fui pedir informações acerca do evento da noite e, sabendo que as portas para as palestras abriam às sete, saí de novo para a rua.Quero voltar à cidade um dia, porque nem sequer me afastei daquela praceta que rodeava o local do evento. Tinha restaurantes, um café simpático, imensas lojas, e um dos edifícios centrais era a biblioteca. Estava aberta, fechava às 20h00 e era enorme! Não cheguei a visitar o piso superior, mas na entrada era possível comprar souvenirs, e beber alguma coisa enquanto nos perdíamos na leitura. Queria regressar ali para tomar café, mas primeiro fui dar mais uma volta, jantei e só depois me instalei numa das mesas com um latte macchiato e o meu kindle. Tinha começado a ler, ironicamente, Um Estranho Em Goa, e decidi queimar a hora que ainda faltava nessas páginas.Às sete voltei ao teatro. Entreguei o meu bilhete, fiz ainda algumas questões - aquilo estava vazio à parte de algum pessoal da organização - e sentei-me a uma mesa à espera. Fui lendo e fui olhando em volta, vendo quem ia chegando. A certa altura, ouvi falar Português; levantei os olhos do livro e ali, num grupo de cinco pessoas, estava o José Eduardo Agualusa.É estranho porque, escrevendo em retrospectiva, só no dia seguinte é que a ficha me caiu e se assentou no facto de que, na verdade, eu conheci o meu escritor favorito. (Está bem, um dos meus dois, porque Mia Couto é bom demais para eu lhe dar o segundo lugar do pódio, as histórias de ambos podem ficar ali, no primeiro lugar de favoritismo.)Olhei, à espera de uma pausa na conversa que o grupo estava a ter e que nunca mais chegava. Não queria ser rude, e ir lá interrompê-lo. Quando fui para Den Haag nem sequer era certo eu conseguir falar com ele, visto que teria de me vir embora antes do evento acabar. Mas continuei a olhar, de vez em quando, a ver se ele dava sinal de mim. E, a certa altura, funcionou. O José Eduardo Agualusa olhou, eu olhei de volta, ele ficou na dúvida e finalmente reparou que a atenção era para ele. Pediu licença ao grupo para se afastar, eu peguei nas minhas coisas, e encontramo-nos a meio caminho.Cumprimentei-o, agradeci-lhe ter-me tirado algumas dúvidas que eu colocara através do facebook sobre o evento, e perguntei-lhe se me podia assinar os livros que eu trazia. Acedeu ao pedido de boa vontade, conversou um bocadinho, tirou fotografias. Não lhe quis roubar muito tempo - afinal a agenda dos últimos dias tinha sido cheia - e, quando ele olha para mim a escrever a data para finalizar o autógrafo e, a rir, me pergunta se estamos em Janeiro, dá para ver que o cansaço é sério. ;)[gallery ids="1575,1574,1573" type="square"]Despedi-me, com a promessa de nos vermos novamente na palestra, e às oito horas lá fui para a sala designada.Era uma sala pequena e, infelizmente, não estava exactamente cheia. Digo infelizmente porque acho que, mesmo entendendo que um escritor de língua Portuguesa vai ter certamente mais sucesso e atenção em países da mesma língua, gostava de ter visto a sala cheia. Mas, tanto melhor para mim, podia ver e ouvir melhor o que ia ser dito.O tema da noite era O Texto Da Minha Vida, e os autores eram convidados a escolherem um texto que os tivesse marcado, moldado a sua escrita, servido de inspiração aos escritores em que se tinham tornado.José Eduardo Agualusa, o primeiro autor a subir ao estrado para falar do seu texto, escolheu um livro. Escolheu Fernando Pessoa (Bernardo Soares, na verdade) e o seu Livro Do Desassossego.O orador fez algumas perguntas - a palestra era em Inglês - e José Eduardo Agualusa foi explicando Fernando Pessoa, foi falando dos heterónimos e de como é extremamente difícil escolher apenas um texto. Tinha escolhido uma passagem do livro, mas também apontou que toda aquela obra, qualquer passagem sua, poderia ser o texto a sua vida. Aquele livro em particular, - do qual possui vários exemplares em vários lugares (a relembrar que apesar de ter nascido em Huambo, Angola, José Eduardo Agualusa vai morando entre Luanda, Lisboa e o Brasil) - viaja sempre com ele. A versão que ele prefere, (pois O Livro Do Desassossego não é um romance, ou um livro de poesia, mas um emaranhado de textos soltos e descomprometidos uns dos outros, que Fernando Pessoa guardou numa gaveta e nunca terminou e foi depois compilado por vários editores de formas diferentes) é a catalogada por Richard Zenith.Não tomei apontamentos, e nunca antes li este livro mas, se a memória não me falha, deixo aqui o trecho que José Eduardo Agualusa escolheu."12. Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço. Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada... De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a’ um filho vivo... Sim, croché..."[gallery ids="1580,1579,1578"]Agualusa falou também sobre A Teoria Geral Do Esquecimento, uma narrativa fabulosa e, questionado acerca do surgimento desta história, explicou que não se recorda ao certo de como a começou, mas que tem uma vaga ideia da história ter vindo até ele em sonhos, já que isso acontece com vários dos seus romances. (Deus quer, o homem sonha, e a obra nasce.)Por pena os vinte minutos da palestra eram contados, e embora Agualusa tenha dado a entender que aprendeu a controlar alguma parte dos seus sonhos, o orador não fez perguntas acerca disso.O escritor confidenciou também que, quando está a escrever e precisa de inspiração, de algo que o empurre para a história que quer criar, é sempre à poesia ou ao Livro Do Desassossego que recorre. Uma passagem, alguns versos, e as engrenagens começam a girar.Falou ainda no facto de ter sido jornalista - e um mau jornalista - porque tudo no jornalismo tem de ser facto, mas para ele havia sempre um " e se...?". E foi assim que passou do jornalismo para a ficção, porque a ficção é a realidade depois de se perguntar "e se...?".Eram 20h20 quando o segundo escritor da noite a trazer um texto tomou o lugar ocupado por Agualusa, que se sentou ali, na primeira fila a escutá-lo também. Quando este terminou, às 20h40, peguei nas minhas coisas. Despedi-me do meu autor predilecto (!!!), agradeci mais uma vez a disponibilidade, e vim embora, de coração leve.Valeu a pena uma tarde toda para poder ouvi-lo por vinte minutos, para ver de perto o construtor daquelas palavras que leio, e me lêem tantas vezes a mim. A saber: José Eduardo Agualusa dobra as páginas dos livros. Foi assim que marcou a passagem escolhida n' O Livro Do Desassossego. :)Este foi o meu Milagrário Pessoal de Janeiro.

Carina Pereira

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