Fonte: Habemus Vídeo!O meu mais novo, o blog Que Não Sei Quê, agora tem um vlog associado!Se vos apetecer ver a minha chapa e ouvir-me falar sobre o filme O Vendedor De Passados, baseado no livro de José Eduardo Agualusa, é por aqui!
Fonte: Habemus Vídeo!O meu mais novo, o blog Que Não Sei Quê, agora tem um vlog associado!Se vos apetecer ver a minha chapa e ouvir-me falar sobre o filme O Vendedor De Passados, baseado no livro de José Eduardo Agualusa, é por aqui!
Lúcia limpou bem os pés no tapete pousado à porta antes de a abrir e, anunciada pelo toque da campainha, entrar na loja. Era uma loja que, sem ser grande, nem pequena, estava coberta a toda a volta por armários de madeira escura e mal polida. Os armários, esses, continham gavetinhas, gavetas e gavetões, e de dentro delas parecia pulsar a própria vida.Não era mentira. Pulsava.O vendedor de partes apareceu de lá do fundo, que é de onde todos os vendedores de lojas assim, sem serem grandes, nem pequenas, aparecem, quando a campainha da porta retine. Olhou-a, de alto a baixo; carregava consigo uma gaveta igual às tantas outras que ali eram parede. Limpava-a com um pedaço de pano usado. Poderia ter sido, em tempos, uma camisola antiga, ou o que sobrara de uns calções de praia, mas já não era possível adivinhar as cores ou os padrões por causa do desgaste. Contrastava o pano com as mãos do vendedor. Essas, eram delicadas, esguias e suaves. As suas unhas estavam bem arranjadas, e os dedos não tinham calos.Quando a olhou, Lúcia entendeu que ele adivinhara o porquê de ela ter vindo. Os olhos dele pousaram mais longamente no lado esquerdo do seu peito, onde o coração lhe doía. Esperou que ele falasse primeiro.- O que deseja?A voz era áspera, mas musicada, como se uma serra tivesse aprendido a dedilhar as cordas transparentes de uma harpa. Talvez, por isso, a tivesse desconcertado.Lúcia respirou suavemente, para ele não lhe notar o nervosismo da postura, e respondeu:- Um coração. O vendedor pousou a gaveta vazia e já limpa no seu sítio, e depois encarou Lúcia. Encolheu os ombros, abriu as mãos, palmas para o céu, e a sua expressão suavizou-se, como o primeiro raio de sol que espreita por entre as nuvens depois de um aguaceiro forte.- Já não temos. É o que toda a gente me vem pedir. As pessoas deviam ter mais cuidado; andam com o coração ao deus de Ará, e qualquer falha no manuseamento lhos desloca do peito. Depois, já não serve mais lá bem. Ainda ontem veio cá um rapaz, é o segundo coração que lhe vendo em quinze dias. Foi o meu último, agora não tenho mais. Para o mês que vem, talvez. Lúcia desapertou as mãos que tinha junto ao peito, sobre esse seu coração também ao deus de Ará. Deixou-as cairem a seu lado. Viera de tão longe, uma viagem que parecera durar uma vida. Não a poderia fazer de novo.O vendedor, com as gavetas cheias de tantas outras partes, abarcou com um movimento de braço todas as possibilidades.- Posso ajudá-la com outra coisa? Uns pulmões? São muito populares hoje em dia, e há uma máquina de tabaco lá atrás...Lúcia abanou a cabeça. Tentou sorrir, para quebrar de vez o embaraço e a desilusão, mas sentiu o coração a deslocar-se mais um pouco. Tentara tantas vezes aferrolhá-lo, para que não lhe andasse assim a chocalhar entre as costelas.- E olhos? Tem olhos?E o vendedor entendeu. Já que não podia sarar de imediato o coração desenquadrado, ia encantar outros corações que por aí andassem, ainda bem ajustados nas avenidas dos seus próprios peitos.- Sim, - respondeu, e foi às caixas mais altas, às relíquias mais preciosas, porque quem pode pagar um coração, pode pagar os melhores olhos desta terra – Tenho estes azuis turqueza, uma raridade...Mas Lúcia interrompeu-o, estendeu a mão, abanou a cabeça.- Não. Quero aqueles. Para a estante mais baixa, apontou certeira, dedo em riste.O vendedor olhou duas vezes, depois mais uma, para ela. Lúcia tinha já olhos castanhos, mais belos ainda do que aqueles que, com tanta certeza, indicava.- Aqueles. – Lúcia insistiu, perante o sobrolho franzido do vendedor, perante a hesitação do seu gesto.O vendedor acenou, colocou os olhos turquesa de volta ao lugar a que pertenciam, e depois pegou nos olhos que Lúcia escolhera. Levou-a para dentro e terminou a operação em minutos. Era minucioso, treinado.Lúcia não sentira nada, apenas um ligeiro formigueiro quando ele lhe retirara os seus olhos antigos e lhe colocara os novos. Via melhor agora, mais longe. Guardou os seus antigos olhos, embrulhados em fina seda, dentro da bolsa, com carinho.Pagou e depois saiu da loja. Esperou ver o vendedor abrigar-se de novo lá atrás e encarou-se por fim na vitrine espelhada.Os seus olhos, os seus novos olhos, eram de um castanho mais escuro, mais opaco. Eram perfeitos.Talvez assim, quando ele lhe perguntasse se ela o amava, e ela mentisse, dizendo que não, ele não conseguisse ler no fundo dos seus olhos a mentira, e resolvesse partir.Talvez, quando ele chegasse a saber-lhe ao sabor de uma outra boca, perguntando-lhe se, ainda assim, o continuava a querer, não fosse então capaz de vislumbrar nos olhos dela o perdão que ela lhe dava ainda antes de ele pedir.Talvez assim ele decidisse ir embora, já que a ela, por causa deste seu coração com defeito, lhe faltava a coragem.E assim sendo, quem sabe, um dia o seu coração voltasse ao sítio, e os seus verdadeiros olhos também.
Carina Pereira
*Inspirado no conto Coração De Porco, por Ondjaki, do livro E Se Amanhã O Medo
Lúcia limpou bem os pés no tapete pousado à porta antes de a abrir e, anunciada pelo toque da campainha, entrar na loja. Era uma loja que, sem ser grande, nem pequena, estava coberta a toda a volta por armários de madeira escura e mal polida. Os armários, esses, continham gavetinhas, gavetas e gavetões, e de dentro delas parecia pulsar a própria vida.Não era mentira. Pulsava.O vendedor de partes apareceu de lá do fundo, que é de onde todos os vendedores de lojas assim, sem serem grandes, nem pequenas, aparecem, quando a campainha da porta retine. Olhou-a, de alto a baixo; carregava consigo uma gaveta igual às tantas outras que ali eram parede. Limpava-a com um pedaço de pano usado. Poderia ter sido, em tempos, uma camisola antiga, ou o que sobrara de uns calções de praia, mas já não era possível adivinhar as cores ou os padrões por causa do desgaste. Contrastava o pano com as mãos do vendedor. Essas, eram delicadas, esguias e suaves. As suas unhas estavam bem arranjadas, e os dedos não tinham calos.Quando a olhou, Lúcia entendeu que ele adivinhara o porquê de ela ter vindo. Os olhos dele pousaram mais longamente no lado esquerdo do seu peito, onde o coração lhe doía. Esperou que ele falasse primeiro.- O que deseja?A voz era áspera, mas musicada, como se uma serra tivesse aprendido a dedilhar as cordas transparentes de uma harpa. Talvez, por isso, a tivesse desconcertado.Lúcia respirou suavemente, para ele não lhe notar o nervosismo da postura, e respondeu:- Um coração. O vendedor pousou a gaveta vazia e já limpa no seu sítio, e depois encarou Lúcia. Encolheu os ombros, abriu as mãos, palmas para o céu, e a sua expressão suavizou-se, como o primeiro raio de sol que espreita por entre as nuvens depois de um aguaceiro forte.- Já não temos. É o que toda a gente me vem pedir. As pessoas deviam ter mais cuidado; andam com o coração ao deus de Ará, e qualquer falha no manuseamento lhos desloca do peito. Depois, já não serve mais lá bem. Ainda ontem veio cá um rapaz, é o segundo coração que lhe vendo em quinze dias. Foi o meu último, agora não tenho mais. Para o mês que vem, talvez. Lúcia desapertou as mãos que tinha junto ao peito, sobre esse seu coração também ao deus de Ará. Deixou-as cairem a seu lado. Viera de tão longe, uma viagem que parecera durar uma vida. Não a poderia fazer de novo.O vendedor, com as gavetas cheias de tantas outras partes, abarcou com um movimento de braço todas as possibilidades.- Posso ajudá-la com outra coisa? Uns pulmões? São muito populares hoje em dia, e há uma máquina de tabaco lá atrás...Lúcia abanou a cabeça. Tentou sorrir, para quebrar de vez o embaraço e a desilusão, mas sentiu o coração a deslocar-se mais um pouco. Tentara tantas vezes aferrolhá-lo, para que não lhe andasse assim a chocalhar entre as costelas.- E olhos? Tem olhos?E o vendedor entendeu. Já que não podia sarar de imediato o coração desenquadrado, ia encantar outros corações que por aí andassem, ainda bem ajustados nas avenidas dos seus próprios peitos.- Sim, - respondeu, e foi às caixas mais altas, às relíquias mais preciosas, porque quem pode pagar um coração, pode pagar os melhores olhos desta terra – Tenho estes azuis turqueza, uma raridade...Mas Lúcia interrompeu-o, estendeu a mão, abanou a cabeça.- Não. Quero aqueles. Para a estante mais baixa, apontou certeira, dedo em riste.O vendedor olhou duas vezes, depois mais uma, para ela. Lúcia tinha já olhos castanhos, mais belos ainda do que aqueles que, com tanta certeza, indicava.- Aqueles. – Lúcia insistiu, perante o sobrolho franzido do vendedor, perante a hesitação do seu gesto.O vendedor acenou, colocou os olhos turquesa de volta ao lugar a que pertenciam, e depois pegou nos olhos que Lúcia escolhera. Levou-a para dentro e terminou a operação em minutos. Era minucioso, treinado.Lúcia não sentira nada, apenas um ligeiro formigueiro quando ele lhe retirara os seus olhos antigos e lhe colocara os novos. Via melhor agora, mais longe. Guardou os seus antigos olhos, embrulhados em fina seda, dentro da bolsa, com carinho.Pagou e depois saiu da loja. Esperou ver o vendedor abrigar-se de novo lá atrás e encarou-se por fim na vitrine espelhada.Os seus olhos, os seus novos olhos, eram de um castanho mais escuro, mais opaco. Eram perfeitos.Talvez assim, quando ele lhe perguntasse se ela o amava, e ela mentisse, dizendo que não, ele não conseguisse ler no fundo dos seus olhos a mentira, e resolvesse partir.Talvez, quando ele chegasse a saber-lhe ao sabor de uma outra boca, perguntando-lhe se, ainda assim, o continuava a querer, não fosse então capaz de vislumbrar nos olhos dela o perdão que ela lhe dava ainda antes de ele pedir.Talvez assim ele decidisse ir embora, já que a ela, por causa deste seu coração com defeito, lhe faltava a coragem.E assim sendo, quem sabe, um dia o seu coração voltasse ao sítio, e os seus verdadeiros olhos também.
Carina Pereira
*Inspirado no conto Coração De Porco, por Ondjaki, do livro E Se Amanhã O Medo
...escrever um pequeno conto com 500 palavras para publicar aqui. Como é que isso se transformou em 2500 palavras ainda a meio da história com outra história lá dentro é que eu não sei.Desejem-me sorte, acho que vou precisar.E, já agora, boa semana a todos.
...escrever um pequeno conto com 500 palavras para publicar aqui. Como é que isso se transformou em 2500 palavras ainda a meio da história com outra história lá dentro é que eu não sei.Desejem-me sorte, acho que vou precisar.E, já agora, boa semana a todos.
Porque não começar esta sexta com um tema que foi abordado na sexta passada? No festival literário de Den Haag, na Holanda, os escritores foram convidados a falare no texto da vida deles. Agora, convido-vos eu a falarem sobre o vosso. As regras da tag são simples:
Escolhe um texto/livro (se for texto e for curto, transcreve-o para aqui).
Explica porque é que esse texto/livro é o da tua vida.
Marca outras pessoas para responderem também!
As pessoas que eu marco para responder, são:Life's TexturesBlog A Limonada da VidaExpresso e StroopwafelByCatarina.comAna Ribeiro - EscreviverOs Devaneios da TimPor favor marquem-me para eu poder ver as vossas respostas!*
Porque não começar esta sexta com um tema que foi abordado na sexta passada? No festival literário de Den Haag, na Holanda, os escritores foram convidados a falare no texto da vida deles. Agora, convido-vos eu a falarem sobre o vosso. As regras da tag são simples:
Escolhe um texto/livro (se for texto e for curto, transcreve-o para aqui).
Explica porque é que esse texto/livro é o da tua vida.
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As pessoas que eu marco para responder, são:Life's TexturesBlog A Limonada da VidaExpresso e StroopwafelByCatarina.comAna Ribeiro - EscreviverOs Devaneios da TimPor favor marquem-me para eu poder ver as vossas respostas!*
Ela mexe-se no leito, desperta calmamente do seu sono leve, e não sabe o que a acordou. Se a brisa que entra pela janela aberta, resguardada apenas pelo delicado algodão das cortinas, se um sonho de que não se lembra. Lá fora as cigarras cantam contra o orvalho nocturno. Abre os olhos, fitando a janela, e antevê a lua lá no alto, auréola de luz amarela, parece um brinco colocado na orelha do céu.Ele beija-lhe o ombro despido e ela sobressalta-se, antes de o reconhecer por sentido. Fita-o, e os olhos dele são duas pedras cintilantes por entre a escuridão.- Sentiste saudades minhas?- Sou-te saudade.A saudade não se sente, a saudade é-se.Ele percorre com o dedo indicador o relevo da espinha dorsal dela, um fio de água correndo pelo rio do seu corpo. Estava frio, estava sempre frio como um chá esquecido sobre uma mesa de madeira antiga. Frio como estava, fora tão quente que a marca ficara para sempre.Pegou-lhe no braço e desenhou-lhe, num formigueiro lento que lhe percorreu o pulso até ao cotovelo, um mapa. Eram as estradas que tinham trilhado até ali, até àquele recanto no fim do mundo onde ela decidira ficar. As estradas também nos escolhem a nós.- Quando vens?A pergunta, repetida de outras vezes, ia-se tornando ansiosa, quase veemente.Ela olhou a navalha, que ele usara tantas vezes para fazer a barba, pousada sobre a mesinha de cabeceira. Era só agarrá-la em mão fechada, encontrar o caminho direito ao coração. Mas os dedos dela tremiam de cada vez que tentava; recuava, voltava a pousar a navalha sobre a mesa de cabeceira e ia dormir. Por esta altura, já não era um querer, era um ritual de adormecimento. De entorpecimento; não ia só dormir, is entorpecer para deixar de ser saudade.- Logo, logo.A resposta, dada com cada vez menos fervor, um descendo no crescendo da pergunta, saía-lhe já mais por habituação do que por crença, mas parecia sossegá-lo. Ele virou-a com delicadeza e depois agarrou-a pela cintura, contra si.De madrugada, quando a forma dele foi lentamente desaparecendo, como que sugado pela aurora, ela sentou-se na cama, olhando a navalha. Desta vez, não lhe pegou. Levantou-se, encheu a banheira de porcelana quase até ao bordo e mergulhou na água quente.O obituário, datado meses antes, ainda repousava sobre mesa da cozinha, a relembrar-lhe a promessa que ela lhe tinha feito na primeira noite que ele, já espectral, lhe tinha aparecido.Tomou o pequeno almoço com vagar. À noite ele sempre vinha e ela, a principio aterrorizada, agora com profundo deleite, deixava que as suas mãos a percorressem como o faziam em vida. Deixava que os seus lábios a tocassem, mesmo frios, como se houvesse ainda um coração a bater-lhe no peito. Não era sonho, nem estava louca. Era aparição. Queria que ela se matasse, para o ir encontrar onde lá estava, mas ela tinha medo dos desencontros da morte. Deixava-se estar com ele neste limbo onde ainda eram amantes.À noite, pertencia-lhe, a promessa da navalha ali ao lado, espectadora dos suspiros que um no outro plantavam.De dia, encontrara já afecto noutros braços, uns braços quentes que a tinham salvo da miséria da solidão, antes de o ser saudade se ter tornado uma mentira.Um na morte, outro na vida. E ela, naquele limbo, na ponta da navalha, sabendo que um dia teria de escolher a quem dar o seu tempo por inteiro. Mas não agora; logo,logo.
Ela mexe-se no leito, desperta calmamente do seu sono leve, e não sabe o que a acordou. Se a brisa que entra pela janela aberta, resguardada apenas pelo delicado algodão das cortinas, se um sonho de que não se lembra. Lá fora as cigarras cantam contra o orvalho nocturno. Abre os olhos, fitando a janela, e antevê a lua lá no alto, auréola de luz amarela, parece um brinco colocado na orelha do céu.Ele beija-lhe o ombro despido e ela sobressalta-se, antes de o reconhecer por sentido. Fita-o, e os olhos dele são duas pedras cintilantes por entre a escuridão.- Sentiste saudades minhas?- Sou-te saudade.A saudade não se sente, a saudade é-se.Ele percorre com o dedo indicador o relevo da espinha dorsal dela, um fio de água correndo pelo rio do seu corpo. Estava frio, estava sempre frio como um chá esquecido sobre uma mesa de madeira antiga. Frio como estava, fora tão quente que a marca ficara para sempre.Pegou-lhe no braço e desenhou-lhe, num formigueiro lento que lhe percorreu o pulso até ao cotovelo, um mapa. Eram as estradas que tinham trilhado até ali, até àquele recanto no fim do mundo onde ela decidira ficar. As estradas também nos escolhem a nós.- Quando vens?A pergunta, repetida de outras vezes, ia-se tornando ansiosa, quase veemente.Ela olhou a navalha, que ele usara tantas vezes para fazer a barba, pousada sobre a mesinha de cabeceira. Era só agarrá-la em mão fechada, encontrar o caminho direito ao coração. Mas os dedos dela tremiam de cada vez que tentava; recuava, voltava a pousar a navalha sobre a mesa de cabeceira e ia dormir. Por esta altura, já não era um querer, era um ritual de adormecimento. De entorpecimento; não ia só dormir, is entorpecer para deixar de ser saudade.- Logo, logo.A resposta, dada com cada vez menos fervor, um descendo no crescendo da pergunta, saía-lhe já mais por habituação do que por crença, mas parecia sossegá-lo. Ele virou-a com delicadeza e depois agarrou-a pela cintura, contra si.De madrugada, quando a forma dele foi lentamente desaparecendo, como que sugado pela aurora, ela sentou-se na cama, olhando a navalha. Desta vez, não lhe pegou. Levantou-se, encheu a banheira de porcelana quase até ao bordo e mergulhou na água quente.O obituário, datado meses antes, ainda repousava sobre mesa da cozinha, a relembrar-lhe a promessa que ela lhe tinha feito na primeira noite que ele, já espectral, lhe tinha aparecido.Tomou o pequeno almoço com vagar. À noite ele sempre vinha e ela, a principio aterrorizada, agora com profundo deleite, deixava que as suas mãos a percorressem como o faziam em vida. Deixava que os seus lábios a tocassem, mesmo frios, como se houvesse ainda um coração a bater-lhe no peito. Não era sonho, nem estava louca. Era aparição. Queria que ela se matasse, para o ir encontrar onde lá estava, mas ela tinha medo dos desencontros da morte. Deixava-se estar com ele neste limbo onde ainda eram amantes.À noite, pertencia-lhe, a promessa da navalha ali ao lado, espectadora dos suspiros que um no outro plantavam.De dia, encontrara já afecto noutros braços, uns braços quentes que a tinham salvo da miséria da solidão, antes de o ser saudade se ter tornado uma mentira.Um na morte, outro na vida. E ela, naquele limbo, na ponta da navalha, sabendo que um dia teria de escolher a quem dar o seu tempo por inteiro. Mas não agora; logo,logo.
Às vezes, os planos de última hora, são os melhores.Quarta-feira à noite, a minha feed do facebook oferece-me uma notícia que eu esperava há muito, na própria página do autor: José Eduardo Agualusa ia estar na Holanda, especificamente em Haia, para falar do seu último livro traduzido para Holandês - A Teoria Geral Do Esquecimento - tudo inserido no festival de literatura de Den Haag.Queria ir, claro. Queria ir com todo o querer, mas é-me comum encontrar impossibilidades em tudo. O evento era já nos dias seguintes. Den Haag não é exactamente ao fundo da rua. Mais: era na Holanda; onde raio podia eu deixar o carro na Holanda para poder ir de comboio? E se não chegava a Eindhoven a horas e perdia o último autocarro da noite e lá ficava, a vadiar até às primeiras horas de manhã? Conduzir 1h45 para chegar a Den Haag também não é a maior viagem já feita, mas para alguém que, como eu, teme o desconhecido e nunca tinha feito semelhante trajecto, ainda para mais com ameaça de neve, pareceu-me ambicioso. Arriscado. Lá está, peçam-me impossibilidades e eu arranjo-as.Então, alguém veio em meu auxílio. E, mesmo depois de me ter sido dado um plano, continuei na dúvida. Vou, não vou? Tão em cima da hora, vou comprar bilhete para o evento, bilhete para o comboio, para ver Agualusa por vinte minutos. Valerá a pena?Fernando Pessoa falou mais alto - e umas outras quantas vozes de incentivo - e, a ser verdade que tudo vale a pena se alma não é pequena, procurei a minha alma e fui.Já disse várias vezes que adoro andar de comboio. Podia ir ali, horas e horas, de um lado para o outro, entretida por um livro ou algumas canções, sem me aborrecer. Deixei o carro em Eindhoven, comprei bilhete para Den Haag e, embalada por uma frase de Agualusa - o melhor da viagem é o sonho - lá fui eu sonhando na viagem.Cheguei a Den Haag passavam dez minutos das cinco da tarde. O dia já escurecia, e a vontade de passear um pouco pela cidade esmoreceu. Estava frio e eu, sem saber bem como tudo ia correr, ainda estava um pouco ansiosa. Encontrei o local do evento facilmente - era apenas a uns minutos da estação - o Theater Aan Het Spui. É difícil de passar ao lado, visto que é a figura central que nos recebe. Tem luzes coloridas no chão, à entrada, e um aspecto acolhedor. Fui pedir informações acerca do evento da noite e, sabendo que as portas para as palestras abriam às sete, saí de novo para a rua.Quero voltar à cidade um dia, porque nem sequer me afastei daquela praceta que rodeava o local do evento. Tinha restaurantes, um café simpático, imensas lojas, e um dos edifícios centrais era a biblioteca. Estava aberta, fechava às 20h00 e era enorme! Não cheguei a visitar o piso superior, mas na entrada era possível comprar souvenirs, e beber alguma coisa enquanto nos perdíamos na leitura. Queria regressar ali para tomar café, mas primeiro fui dar mais uma volta, jantei e só depois me instalei numa das mesas com um latte macchiato e o meu kindle. Tinha começado a ler, ironicamente, Um Estranho Em Goa, e decidi queimar a hora que ainda faltava nessas páginas.Às sete voltei ao teatro. Entreguei o meu bilhete, fiz ainda algumas questões - aquilo estava vazio à parte de algum pessoal da organização - e sentei-me a uma mesa à espera. Fui lendo e fui olhando em volta, vendo quem ia chegando. A certa altura, ouvi falar Português; levantei os olhos do livro e ali, num grupo de cinco pessoas, estava o José Eduardo Agualusa.É estranho porque, escrevendo em retrospectiva, só no dia seguinte é que a ficha me caiu e se assentou no facto de que, na verdade, eu conheci o meu escritor favorito. (Está bem, um dos meus dois, porque Mia Couto é bom demais para eu lhe dar o segundo lugar do pódio, as histórias de ambos podem ficar ali, no primeiro lugar de favoritismo.)Olhei, à espera de uma pausa na conversa que o grupo estava a ter e que nunca mais chegava. Não queria ser rude, e ir lá interrompê-lo. Quando fui para Den Haag nem sequer era certo eu conseguir falar com ele, visto que teria de me vir embora antes do evento acabar. Mas continuei a olhar, de vez em quando, a ver se ele dava sinal de mim. E, a certa altura, funcionou. O José Eduardo Agualusa olhou, eu olhei de volta, ele ficou na dúvida e finalmente reparou que a atenção era para ele. Pediu licença ao grupo para se afastar, eu peguei nas minhas coisas, e encontramo-nos a meio caminho.Cumprimentei-o, agradeci-lhe ter-me tirado algumas dúvidas que eu colocara através do facebook sobre o evento, e perguntei-lhe se me podia assinar os livros que eu trazia. Acedeu ao pedido de boa vontade, conversou um bocadinho, tirou fotografias. Não lhe quis roubar muito tempo - afinal a agenda dos últimos dias tinha sido cheia - e, quando ele olha para mim a escrever a data para finalizar o autógrafo e, a rir, me pergunta se estamos em Janeiro, dá para ver que o cansaço é sério. ;)[gallery ids="1575,1574,1573" type="square"]Despedi-me, com a promessa de nos vermos novamente na palestra, e às oito horas lá fui para a sala designada.Era uma sala pequena e, infelizmente, não estava exactamente cheia. Digo infelizmente porque acho que, mesmo entendendo que um escritor de língua Portuguesa vai ter certamente mais sucesso e atenção em países da mesma língua, gostava de ter visto a sala cheia. Mas, tanto melhor para mim, podia ver e ouvir melhor o que ia ser dito.O tema da noite era O Texto Da Minha Vida, e os autores eram convidados a escolherem um texto que os tivesse marcado, moldado a sua escrita, servido de inspiração aos escritores em que se tinham tornado.José Eduardo Agualusa, o primeiro autor a subir ao estrado para falar do seu texto, escolheu um livro. Escolheu Fernando Pessoa (Bernardo Soares, na verdade) e o seu Livro Do Desassossego.O orador fez algumas perguntas - a palestra era em Inglês - e José Eduardo Agualusa foi explicando Fernando Pessoa, foi falando dos heterónimos e de como é extremamente difícil escolher apenas um texto. Tinha escolhido uma passagem do livro, mas também apontou que toda aquela obra, qualquer passagem sua, poderia ser o texto a sua vida. Aquele livro em particular, - do qual possui vários exemplares em vários lugares (a relembrar que apesar de ter nascido em Huambo, Angola, José Eduardo Agualusa vai morando entre Luanda, Lisboa e o Brasil) - viaja sempre com ele. A versão que ele prefere, (pois O Livro Do Desassossego não é um romance, ou um livro de poesia, mas um emaranhado de textos soltos e descomprometidos uns dos outros, que Fernando Pessoa guardou numa gaveta e nunca terminou e foi depois compilado por vários editores de formas diferentes) é a catalogada por Richard Zenith.Não tomei apontamentos, e nunca antes li este livro mas, se a memória não me falha, deixo aqui o trecho que José Eduardo Agualusa escolheu."12. Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço. Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada... De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a’ um filho vivo... Sim, croché..."[gallery ids="1580,1579,1578"]Agualusa falou também sobre A Teoria Geral Do Esquecimento, uma narrativa fabulosa e, questionado acerca do surgimento desta história, explicou que não se recorda ao certo de como a começou, mas que tem uma vaga ideia da história ter vindo até ele em sonhos, já que isso acontece com vários dos seus romances. (Deus quer, o homem sonha, e a obra nasce.)Por pena os vinte minutos da palestra eram contados, e embora Agualusa tenha dado a entender que aprendeu a controlar alguma parte dos seus sonhos, o orador não fez perguntas acerca disso.O escritor confidenciou também que, quando está a escrever e precisa de inspiração, de algo que o empurre para a história que quer criar, é sempre à poesia ou ao Livro Do Desassossego que recorre. Uma passagem, alguns versos, e as engrenagens começam a girar.Falou ainda no facto de ter sido jornalista - e um mau jornalista - porque tudo no jornalismo tem de ser facto, mas para ele havia sempre um " e se...?". E foi assim que passou do jornalismo para a ficção, porque a ficção é a realidade depois de se perguntar "e se...?".Eram 20h20 quando o segundo escritor da noite a trazer um texto tomou o lugar ocupado por Agualusa, que se sentou ali, na primeira fila a escutá-lo também. Quando este terminou, às 20h40, peguei nas minhas coisas. Despedi-me do meu autor predilecto (!!!), agradeci mais uma vez a disponibilidade, e vim embora, de coração leve.Valeu a pena uma tarde toda para poder ouvi-lo por vinte minutos, para ver de perto o construtor daquelas palavras que leio, e me lêem tantas vezes a mim. A saber: José Eduardo Agualusa dobra as páginas dos livros. Foi assim que marcou a passagem escolhida n' O Livro Do Desassossego. :)Este foi o meu Milagrário Pessoal de Janeiro.
Às vezes, os planos de última hora, são os melhores.Quarta-feira à noite, a minha feed do facebook oferece-me uma notícia que eu esperava há muito, na própria página do autor: José Eduardo Agualusa ia estar na Holanda, especificamente em Haia, para falar do seu último livro traduzido para Holandês - A Teoria Geral Do Esquecimento - tudo inserido no festival de literatura de Den Haag.Queria ir, claro. Queria ir com todo o querer, mas é-me comum encontrar impossibilidades em tudo. O evento era já nos dias seguintes. Den Haag não é exactamente ao fundo da rua. Mais: era na Holanda; onde raio podia eu deixar o carro na Holanda para poder ir de comboio? E se não chegava a Eindhoven a horas e perdia o último autocarro da noite e lá ficava, a vadiar até às primeiras horas de manhã? Conduzir 1h45 para chegar a Den Haag também não é a maior viagem já feita, mas para alguém que, como eu, teme o desconhecido e nunca tinha feito semelhante trajecto, ainda para mais com ameaça de neve, pareceu-me ambicioso. Arriscado. Lá está, peçam-me impossibilidades e eu arranjo-as.Então, alguém veio em meu auxílio. E, mesmo depois de me ter sido dado um plano, continuei na dúvida. Vou, não vou? Tão em cima da hora, vou comprar bilhete para o evento, bilhete para o comboio, para ver Agualusa por vinte minutos. Valerá a pena?Fernando Pessoa falou mais alto - e umas outras quantas vozes de incentivo - e, a ser verdade que tudo vale a pena se alma não é pequena, procurei a minha alma e fui.Já disse várias vezes que adoro andar de comboio. Podia ir ali, horas e horas, de um lado para o outro, entretida por um livro ou algumas canções, sem me aborrecer. Deixei o carro em Eindhoven, comprei bilhete para Den Haag e, embalada por uma frase de Agualusa - o melhor da viagem é o sonho - lá fui eu sonhando na viagem.Cheguei a Den Haag passavam dez minutos das cinco da tarde. O dia já escurecia, e a vontade de passear um pouco pela cidade esmoreceu. Estava frio e eu, sem saber bem como tudo ia correr, ainda estava um pouco ansiosa. Encontrei o local do evento facilmente - era apenas a uns minutos da estação - o Theater Aan Het Spui. É difícil de passar ao lado, visto que é a figura central que nos recebe. Tem luzes coloridas no chão, à entrada, e um aspecto acolhedor. Fui pedir informações acerca do evento da noite e, sabendo que as portas para as palestras abriam às sete, saí de novo para a rua.Quero voltar à cidade um dia, porque nem sequer me afastei daquela praceta que rodeava o local do evento. Tinha restaurantes, um café simpático, imensas lojas, e um dos edifícios centrais era a biblioteca. Estava aberta, fechava às 20h00 e era enorme! Não cheguei a visitar o piso superior, mas na entrada era possível comprar souvenirs, e beber alguma coisa enquanto nos perdíamos na leitura. Queria regressar ali para tomar café, mas primeiro fui dar mais uma volta, jantei e só depois me instalei numa das mesas com um latte macchiato e o meu kindle. Tinha começado a ler, ironicamente, Um Estranho Em Goa, e decidi queimar a hora que ainda faltava nessas páginas.Às sete voltei ao teatro. Entreguei o meu bilhete, fiz ainda algumas questões - aquilo estava vazio à parte de algum pessoal da organização - e sentei-me a uma mesa à espera. Fui lendo e fui olhando em volta, vendo quem ia chegando. A certa altura, ouvi falar Português; levantei os olhos do livro e ali, num grupo de cinco pessoas, estava o José Eduardo Agualusa.É estranho porque, escrevendo em retrospectiva, só no dia seguinte é que a ficha me caiu e se assentou no facto de que, na verdade, eu conheci o meu escritor favorito. (Está bem, um dos meus dois, porque Mia Couto é bom demais para eu lhe dar o segundo lugar do pódio, as histórias de ambos podem ficar ali, no primeiro lugar de favoritismo.)Olhei, à espera de uma pausa na conversa que o grupo estava a ter e que nunca mais chegava. Não queria ser rude, e ir lá interrompê-lo. Quando fui para Den Haag nem sequer era certo eu conseguir falar com ele, visto que teria de me vir embora antes do evento acabar. Mas continuei a olhar, de vez em quando, a ver se ele dava sinal de mim. E, a certa altura, funcionou. O José Eduardo Agualusa olhou, eu olhei de volta, ele ficou na dúvida e finalmente reparou que a atenção era para ele. Pediu licença ao grupo para se afastar, eu peguei nas minhas coisas, e encontramo-nos a meio caminho.Cumprimentei-o, agradeci-lhe ter-me tirado algumas dúvidas que eu colocara através do facebook sobre o evento, e perguntei-lhe se me podia assinar os livros que eu trazia. Acedeu ao pedido de boa vontade, conversou um bocadinho, tirou fotografias. Não lhe quis roubar muito tempo - afinal a agenda dos últimos dias tinha sido cheia - e, quando ele olha para mim a escrever a data para finalizar o autógrafo e, a rir, me pergunta se estamos em Janeiro, dá para ver que o cansaço é sério. ;)[gallery ids="1575,1574,1573" type="square"]Despedi-me, com a promessa de nos vermos novamente na palestra, e às oito horas lá fui para a sala designada.Era uma sala pequena e, infelizmente, não estava exactamente cheia. Digo infelizmente porque acho que, mesmo entendendo que um escritor de língua Portuguesa vai ter certamente mais sucesso e atenção em países da mesma língua, gostava de ter visto a sala cheia. Mas, tanto melhor para mim, podia ver e ouvir melhor o que ia ser dito.O tema da noite era O Texto Da Minha Vida, e os autores eram convidados a escolherem um texto que os tivesse marcado, moldado a sua escrita, servido de inspiração aos escritores em que se tinham tornado.José Eduardo Agualusa, o primeiro autor a subir ao estrado para falar do seu texto, escolheu um livro. Escolheu Fernando Pessoa (Bernardo Soares, na verdade) e o seu Livro Do Desassossego.O orador fez algumas perguntas - a palestra era em Inglês - e José Eduardo Agualusa foi explicando Fernando Pessoa, foi falando dos heterónimos e de como é extremamente difícil escolher apenas um texto. Tinha escolhido uma passagem do livro, mas também apontou que toda aquela obra, qualquer passagem sua, poderia ser o texto a sua vida. Aquele livro em particular, - do qual possui vários exemplares em vários lugares (a relembrar que apesar de ter nascido em Huambo, Angola, José Eduardo Agualusa vai morando entre Luanda, Lisboa e o Brasil) - viaja sempre com ele. A versão que ele prefere, (pois O Livro Do Desassossego não é um romance, ou um livro de poesia, mas um emaranhado de textos soltos e descomprometidos uns dos outros, que Fernando Pessoa guardou numa gaveta e nunca terminou e foi depois compilado por vários editores de formas diferentes) é a catalogada por Richard Zenith.Não tomei apontamentos, e nunca antes li este livro mas, se a memória não me falha, deixo aqui o trecho que José Eduardo Agualusa escolheu."12. Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer. Que há-de alguém confessar que valha ou que sirva? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente. E recomeço. Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Croché das coisas... Intervalo... Nada... De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a’ um filho vivo... Sim, croché..."[gallery ids="1580,1579,1578"]Agualusa falou também sobre A Teoria Geral Do Esquecimento, uma narrativa fabulosa e, questionado acerca do surgimento desta história, explicou que não se recorda ao certo de como a começou, mas que tem uma vaga ideia da história ter vindo até ele em sonhos, já que isso acontece com vários dos seus romances. (Deus quer, o homem sonha, e a obra nasce.)Por pena os vinte minutos da palestra eram contados, e embora Agualusa tenha dado a entender que aprendeu a controlar alguma parte dos seus sonhos, o orador não fez perguntas acerca disso.O escritor confidenciou também que, quando está a escrever e precisa de inspiração, de algo que o empurre para a história que quer criar, é sempre à poesia ou ao Livro Do Desassossego que recorre. Uma passagem, alguns versos, e as engrenagens começam a girar.Falou ainda no facto de ter sido jornalista - e um mau jornalista - porque tudo no jornalismo tem de ser facto, mas para ele havia sempre um " e se...?". E foi assim que passou do jornalismo para a ficção, porque a ficção é a realidade depois de se perguntar "e se...?".Eram 20h20 quando o segundo escritor da noite a trazer um texto tomou o lugar ocupado por Agualusa, que se sentou ali, na primeira fila a escutá-lo também. Quando este terminou, às 20h40, peguei nas minhas coisas. Despedi-me do meu autor predilecto (!!!), agradeci mais uma vez a disponibilidade, e vim embora, de coração leve.Valeu a pena uma tarde toda para poder ouvi-lo por vinte minutos, para ver de perto o construtor daquelas palavras que leio, e me lêem tantas vezes a mim. A saber: José Eduardo Agualusa dobra as páginas dos livros. Foi assim que marcou a passagem escolhida n' O Livro Do Desassossego. :)Este foi o meu Milagrário Pessoal de Janeiro.
Lá diz a expressão: ano novo, boteco antigo. Ou, se não é uma expressão já, devia ser!Aqui nos encontramos mais uma vez, agora em 2016, para o primeiro Boteco Das Tertúlias do ano. E, para não destoar, trazemos um tema de que muito se fala: resoluções de ano novo.Espero que gostem e, como sempre, não se esqueçam que a esta mesa se sentam mais quatro pensadoras, e que cada uma traz uma perspectiva diferente sobre este assunto. Vão lá lê-las!*Há pessoas que vivem para fazer e outras que vivem para sonhar.Esta é a primeira frase de um pequeno conto que me apareceu de mansinho de madrugada, enquanto eu lutava com um sono que me teimava em fugir. O conto começou com a frase e a ideia tomou vaga forma. Apontei-a, sabendo que precisava de tempo para com ela brincar, tempo fora daquela madrugada sem sono, um tempo que não fosse contado, nem apressado. Esse tempo nunca mais chegou.A frase ficou perdida no caderno que a acolheu, saltitou em mim uma ou outra vez, sem que eu resolvesse sentar-me para lhe dar o que me pedia: forma. É a ironia que a salva agora e, sem a afastar definitavamente da história a que pertence de raiz, a assenta nesta reflexão que faço.Talvez eu seja uma pessoa-sonho, e não uma pessoa-faz. Talvez os sonhos sejam tão altos que alcançá-los me dê vertigens. Mas, como posso eu saber que tenho vertigens desses sonhos se nem sequer me dou ao medo que é subi-los?Não faço resoluções de ano novo, porque não tenho medo de falhar. Melhor: não me quero dar ao ter medo de falhar, porque isso complica as coisas. E as resoluções, se não forem para cumprir, mas para falhar, de nada servem. Gosto, no entanto, de tentar ser mais o que eu quero ser, tornar-me num eu que me agrade, dia-a-dia. Houve alturas em que não gostei de mim, por não estar onde eu queria e parecer incapaz de dar o passo que era preciso para me encontrar de novo. Hoje, já dei o passo e foi mais fácil do que julgava. Quem sabe, talvez tivesse sido mesmo a altura certa. Talvez, de certa forma, às vezes as resluções nos façam a nós.Mesmo sem resoluções definidas, os começos de ano parecem-me sempre bons para inícios. São a desculpa perfeita para virar uma qualquer página, para acender uma outra esperança. E é preciso ir acendendo esperanças, ir acreditando que, se começarmos na segunda levaremos tudo avante até sexta. Mesmo que se desista a uma quinta; é o acreditar que, eventualmente, nos leva até ao fim.
Lá diz a expressão: ano novo, boteco antigo. Ou, se não é uma expressão já, devia ser!Aqui nos encontramos mais uma vez, agora em 2016, para o primeiro Boteco Das Tertúlias do ano. E, para não destoar, trazemos um tema de que muito se fala: resoluções de ano novo.Espero que gostem e, como sempre, não se esqueçam que a esta mesa se sentam mais quatro pensadoras, e que cada uma traz uma perspectiva diferente sobre este assunto. Vão lá lê-las!*Há pessoas que vivem para fazer e outras que vivem para sonhar.Esta é a primeira frase de um pequeno conto que me apareceu de mansinho de madrugada, enquanto eu lutava com um sono que me teimava em fugir. O conto começou com a frase e a ideia tomou vaga forma. Apontei-a, sabendo que precisava de tempo para com ela brincar, tempo fora daquela madrugada sem sono, um tempo que não fosse contado, nem apressado. Esse tempo nunca mais chegou.A frase ficou perdida no caderno que a acolheu, saltitou em mim uma ou outra vez, sem que eu resolvesse sentar-me para lhe dar o que me pedia: forma. É a ironia que a salva agora e, sem a afastar definitavamente da história a que pertence de raiz, a assenta nesta reflexão que faço.Talvez eu seja uma pessoa-sonho, e não uma pessoa-faz. Talvez os sonhos sejam tão altos que alcançá-los me dê vertigens. Mas, como posso eu saber que tenho vertigens desses sonhos se nem sequer me dou ao medo que é subi-los?Não faço resoluções de ano novo, porque não tenho medo de falhar. Melhor: não me quero dar ao ter medo de falhar, porque isso complica as coisas. E as resoluções, se não forem para cumprir, mas para falhar, de nada servem. Gosto, no entanto, de tentar ser mais o que eu quero ser, tornar-me num eu que me agrade, dia-a-dia. Houve alturas em que não gostei de mim, por não estar onde eu queria e parecer incapaz de dar o passo que era preciso para me encontrar de novo. Hoje, já dei o passo e foi mais fácil do que julgava. Quem sabe, talvez tivesse sido mesmo a altura certa. Talvez, de certa forma, às vezes as resluções nos façam a nós.Mesmo sem resoluções definidas, os começos de ano parecem-me sempre bons para inícios. São a desculpa perfeita para virar uma qualquer página, para acender uma outra esperança. E é preciso ir acendendo esperanças, ir acreditando que, se começarmos na segunda levaremos tudo avante até sexta. Mesmo que se desista a uma quinta; é o acreditar que, eventualmente, nos leva até ao fim.
Apanhar o comboio para Den Haag - máximo duas horas de viagem - ouvir o José Eduardo Agualusa para aí por vinte minutos e vê-lo por uma hora ou assim, sem a certeza se consigo autógrafo ou estar com ele porque tenho de me vir embora antes do evento acabar para conseguir apanhar o comboio a tempo para regressar a Eindhoven, onde vou deixar o carro. E fazer isto vai-me ficar por uns 80 euros a passar (bilhete para o evento mais comboio mais comida, etc e tal).
Apanhar o comboio para Den Haag - máximo duas horas de viagem - ouvir o José Eduardo Agualusa para aí por vinte minutos e vê-lo por uma hora ou assim, sem a certeza se consigo autógrafo ou estar com ele porque tenho de me vir embora antes do evento acabar para conseguir apanhar o comboio a tempo para regressar a Eindhoven, onde vou deixar o carro. E fazer isto vai-me ficar por uns 80 euros a passar (bilhete para o evento mais comboio mais comida, etc e tal).